Conheça neste artigo o que significa a "Teoria Queer". Baseada nos estudos da Desconstrução, de Jacques Derrida, que prevem a desmontagem de textos para o exame detalhado de seus componentes e processos formadores, essa teoria utiliza o mesmo processo de questionamento que na linguística para trazer à compreensão como se processa a manifestação do gênero, relativa à interpretação do sexo e da sexualidade. O texto abaixo é a reprodução literal de trecho de dissertação de mestrado produzida na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul por Prof. Me. Carolli (2017). O texto foi elaborado para ser didático e é destinado à formação do público em geral, especialmente à formação docente.
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A
Teoria Queer
Uma
vertente teórica importante nos estudos relativos às discriminações
referentes à diversidade
de expressão da sexualidade e da identidade de gênero
no âmbito da Educação é a Teoria Queer,
que surgiu na década de 1990 tendo como referencial teórico os
estudos de Michel Foucault e de Jacques Derrida, além da
contemporânea Judith Butler. A teoria é originária do encontro dos
estudos culturais norte-americanos com o pós-estruturalismo francês.
Queer
pode ser traduzido por estranho, excêntrico, raro ou extraordinário.
A teoria faz uso da proposta da
Desconstrução derridiana para questionar as categorizações e
hierarquizações de identidades baseadas em sexo e identidade de
gênero. O termo queer,
assumido por movimentos defensores dos direitos LGBT, significa a
apropriação de um designativo usado para deboche, no sentido de se
fazer uma autoafirmação.
Butler
(2008)
desconstrói conceitos tradicionais sobre gênero e sexualidade a fim
de promover revisões sobre como se interpreta a diversidade
de expressão da sexualidade e da identidade de gênero. Ao propor
uma reflexão sobre as práticas discriminatórias, a Pedagogia Queer
opera desconstruindo binarismos, de maneira a desmascarar a falsa
lógica da repressão e da subordinação. Segundo Louro:
A
construção discursiva das sexualidades, exposta por Foucault, vai
se mostrar fundamental para a teoria queer.
Da mesma forma, a operação de desconstrução, proposta por Jacques
Derrida, parecerá, para muitos teóricos e teóricas, o procedimento
metodológico mais produtivo. Conforme Derrida, a lógica ocidental
opera, tradicionalmente, através de binarismos: este é um
pensamento que elege e fixa como fundante ou como central uma idéia,
uma entidade ou um sujeito, determinando, a partir desse lugar, a
posição do ‘outro’, o seu oposto subordinado. O termo inicial é
compreendido sempre como superior, enquanto que o outro é o seu
derivado, inferior. Derrida afirma que essa lógica poderia ser
abalada através de um processo desconstrutivo que estrategicamente
revertesse, desestabilizasse e desordenasse esses pares. […].
(2001, p. 528).
Quanto às questões relativas à
diversidade
de expressão da sexualidade e da identidade de gênero,
a Teoria queer
poderia colaborar para a construção de uma pedagogia capaz de
atender ao trato da diversidade por meio de um Currículo que
reconhecesse os indivíduos e não apenas os observasse como
diferentes a partir do processo da Desconstrução. Um exemplo de
atuação é a descrição didática do processo de Desconstrução
sobre o conceito de “homossexual” no final deste capítulo. A
Pedagogia Queer
poderia contribuir para o combate à atitudes discriminatórias e
para a promoção da inclusão, demonstrando as incoerências e a
instabilidade da norma que se baseia numa relação de fixidez entre
sexo biológico, práticas sexuais e identidade de gênero:
Em
sentido genérico, queer
descreve as atitudes ou modelos analíticos que ilustram as
incoerências das relações alegadamente estáveis entre sexo
biológico, género e desejo sexual. Resistindo a este modelo de
estabilidade – que reivindica a sua origem na heterossexualidade,
quando é na realidade o resultado desta – o queer
centra-se nas descoincidências entre sexo, género e desejo. […]
Quer seja uma performance travesti ou uma desconstrução teórica, o
queer
localiza e explora as incoerências destas três concepções que
estabilizam a heterossexualidade. Demonstrando a impossibilidade de
qualquer sexualidade “natural”, coloca em questão até mesmo
categorias aparentemente não problemáticas como as de “homem” e
“mulher”. (JAGOSE, 1996, p. 3).
Assim, a teoria queer,
que se vale da Desconstrução, poderá auxiliar na compreensão do
funcionamento de processos discriminatórios, uma vez que traz à
vista seus mecanismos de atuação, permitindo uma reflexão
contextual que busque as causas para então atuar com mais eficiência
sobre as fontes das
discriminações que operam fortemente no campo da normalização da
sexualidade. O que a teoria ajuda a entender é que uma forma de
sexualidade foi generalizada como norma, funcionando para todos os
sujeitos, assim como uma norma para a identidade de gênero também
foi padronizada universalmente e apresentada como fixa em relação
ao sexo biológico. Assim, a heterossexualidade é tida como
“natural” e como padronização universal para a sexualidade
humana. Espera-se dessa padronização que todos os sujeitos tenham,
compulsoriamente, uma sexualidade que eleja parceiros de sexo oposto
como objeto de sua atração. Em decorrência dessa padronização,
outras formas de sexualidade são tomadas como “antinaturais” ou
“anormais”. Louro observa que, apesar de a heterossexualidade ser
tida como “natural”, é alvo da “[...] mais meticulosa
continuada e intensa vigilância [...].” (LOURO, 2000, p. 10), o
que também evidencia a incoerência do discurso heterossexista, bem
como sua artificialidade.
A Desconstrução e a revisão
do conceito de gênero, que se demonstra histórica e socialmente
construído segundo o Logocentrismo, ajudaria alunas e alunos a
entenderem os motivos pelos quais não faz sentido discriminar a
diversidade de expressão da sexualidade e da identidade de gênero,
pois ficaria clara a falha lógica na concepção de gênero segundo
a cultura ocidental, que tenta enquadrar todos os seres humanos em
apenas duas categorias definidas, homem e mulher, apresentadas como
opostas, das quais deriva-se um binarismo, que é artificial, que
esquece de contemplar a diversidade, pois “[...] imagens
corporais que não se encaixam em nenhum desses dois gêneros ficam
fora do humano, constituem a rigor o domínio do desumanizado e do
abjeto, em contraposição ao qual o próprio humano se estabelece.”
(BUTLER, 2008, p. 162). Nesse ponto surge também a questão do que
seria considerado humano e do que seria considerado não humano,
associada à ideia do que seria considerado como “natural” e
“antinatural”, criando-se mais um binarismo para categorizar e
hierarquizar, inferiorizando as identidades relativas a expressões
de gênero não normativas. Esse binarismo também é flagrantemente
artificial, posto que se constrói pelo que é nominado como natural
ou antinatural, que, por sua vez, também são conceitos construídos
pela cultura sem que se problematize essa questão. A não adequação
de um sujeito a essa norma comumente implica seu enquadramento nos
estereótipos de “perverso”, “anormal”, “doente”, etc.,
servindo, mais uma vez, à coerção exercida pelo sistema
heterocêntrico.
A
rigidez binarista do conceito de gênero, tradicionalmente atrelado
ao conceito biológico de sexo, força uma maneira de pensar que não
permite visualizar que as variantes da sexualidade e da identidade de
gênero são apenas expressões da diversidade humana, que precisam
ser reconhecidas sem que se hierarquizem as diferenças. Esse é um
desafio ao Currículo escolar, que por vezes tem apresentado a
diversidade como o estudo do exótico, do diferente, amplificando
diferenças de tratamento quando na realidade deveria eliminá-las,
com vistas ao reconhecimento dos direitos para todos os indivíduos.
Nossa sociedade é regida por
normas construídas historicamente. São essas normalizações que
devem ser entendidas pelo processo de Desconstrução para que se
reconheçam suas incoerências e injustiças:
[...]
Em nossa sociedade, a norma que se estabelece, historicamente, remete
ao homem branco, heterossexual, de classe média urbana e cristão e
essa passa a ser a referência que não precisa mais ser nomeada.
Serão os "outros" sujeitos sociais que se tornarão
"marcados", que se definirão e serão denominados a partir
dessa referência. Desta forma, a mulher é representada como "o
segundo sexo" e gays e lésbicas são descritos como desviantes
da norma heterossexual. Ao classificar os sujeitos, toda sociedade
estabelece divisões e atribui rótulos que pretendem fixar as
identidades. Ela define, separa e, de formas sutis ou violentas,
também distingue e discrimina. [...]. (LOURO, 2000, p. 09).
Uma vez desconstruída essa
ideia por processos educativos, quebra-se a lógica falsa que
sustenta as discriminações relativas à diversidade
de expressão da sexualidade e da identidade de gênero; desmoronam
edifícios criados sobre alicerces de areia. Ademais, o processo de
Desconstrução discursiva pode ainda
ser usado no estudo de quaisquer outros tipos de discriminações,
pois pode levar à quebra de tabus1,
de paradigmas morais e de conceitos tradicionais.
É necessária também uma
atitude de enfrentamento político a resistências, que deve ser em
favor da educação e da justiça social para indivíduos
historicamente deixados à margem da sociedade. Para isso acontecer,
é importante também que se dialogue com a religião, para que seja
promovido o exame de conceitos que estão na base de formação do
discurso religioso. Nesse diálogo entre religião e educação, a
primeira também precisa se flexibilizar, entendendo que o próprio
discurso religioso tem a ganhar com revisões conceituais mediante o
aporte de conhecimentos científicos, como já tem acontecido no
decorrer da história.
O
gênero na visão Queer
Como
o gênero é compreendido pela teoria queer?
Uma das
mais importantes autoras da teoria queer
é Judith Butler. Para ela, “[...]
O
gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural
de significado num sexo previamente dado (uma concepção jurídica);
tem de designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual
os próprios sexos são estabelecidos. [...].” (BUTLER, 2008, p.
25).
Em outras palavras, o que se
interpreta por sexo e gênero deve ser mais estudado, pois a própria
visão biológica do sexo não é algo fixo, definido simplesmente
pela presença dos órgãos sexuais masculino ou feminino, mas sim
pela interpretação que se faz dele, que é determinada pela
cultura.
[...]
Não se pode, de forma alguma, conceber o gênero como um constructo
cultural que é simplesmente imposto sobre a superfície da matéria
– quer se entenda essa como o "corpo", quer como um
suposto sexo. Ao invés disso, uma vez que o próprio "sexo"
seja compreendido em sua normatividade, a materialidade do corpo não
pode ser pensada separadamente da materialização daquela norma
regulatória. O "sexo" é, pois, não simplesmente aquilo
que alguém tem ou uma descrição estática daquilo que alguém é:
ele é uma das normas pelas quais o "alguém" simplesmente
se torna viável, é aquilo que qualifica um corpo para a vida no
interior do domínio da inteligibilidade cultural. (LOURO, 2000, p.
111).
Assim, se o próprio sexo passa
a ser algo questionado, quanto mais será a noção de gênero, que é
a expressão cultural, que normalmente interpretaria o sexo de um
sujeito.
Butler (2008) desconstrói os
mecanismos da sexualidade e, por consequência, do gênero, para
trazer questionamentos pertinentes à formação de identidades.
Segundo a autora, a identidade, a partir de uma visão cultural
ocidental é:
[…]
assegurada por conceitos estabilizadores de sexo, gênero e
sexualidade, a própria noção de ‘pessoa’ se veria questionada
pela emergência cultural daqueles seres cujo gênero é ‘incoerente’
ou ‘descontínuo’, os quais parecem ser pessoas, mas não se
conformam às normas de gênero da inteligibilidade cultural pelas
quais as pessoas são definidas.”
(BUTLER, 2008, p. 38).
A
teoria, queer tem
a “performance” como um de seus conceitos-chave, que descreve que
“atos de gênero” rompem as categorias de sexo, corpo,
sexualidade e gênero, “[...] ocasionando sua ressignificação
subversiva e a superação da estrutura binária” (BUTLER,
2008, p. 20). O
conceito de performance não representa um ato deliberado, mas uma
prática que se refere aos efeitos produzidos por discursos sobre
sexualidade e gênero. A materialidade dos corpos ou a do sexo seria,
por essa visão, construída através da ação performativa das
normas reguladoras.
A Desconstrução dos conceitos
tradicionais apresentada por Butler (2008) é um caminho para se
colocar em questionamento as hierarquizações de identidades
resultantes de categorizações, tendo-se em vista que as categorias
derivadas da interpretação da sexualidade e do gênero são na
verdade construtos sociais, conceitos aprendidos, assim como são
aprendidas as práticas sexuais e os papéis sociais dos indivíduos.
Essa construção social, que
figura como uma ficção, pode então ser desconstruída e novamente
construída com uma nova significação, livre de hierarquizações,
tabus e injustiças sociais.
Essa
teoria também se baseia na Desconstrução originalmente proposta
por Derrida (1973;
2009; 2005).
Porém, nesse caso, o que é estudado são os papéis sociais dos
indivíduos relativos à diversidade de expressão da sexualidade e
da identidade de gênero, de modo a entender como se deram essas
construções e como esse entendimento pode beneficiar ações que
visem à promoção do reconhecimento dos indivíduos considerados
fora da norma tradicional de sexualidade e de gênero.
Um
paralelo da teoria queer
com o estudo da linguagem (DERRIDA, 1973) e dos discursos (FOUCALT,
2008), descrito na presente pesquisa, pode ser traçado de maneira a
entender melhor a atuação da teoria queer
nos estudos sobre gênero e sexualidade: a teoria queer
trata a formação humana considerando-a imersa na estrutura
linguística da sociedade, ou seja, mediante as interações de
discursos e a ação do Poder, segundo descreve Foucault (2006).
Assim como o referido pesquisador trata os discursos como fenômenos
sociais e não práticas individuais, Butler (2008) também
compreende a formação dos sujeitos, mediante um processo no qual
estão susceptíveis aos discursos circulantes na sociedade e ao
Poder articulado com o Saber. Assim como Derrida (1973) sugere a
Desconstrução de Discursos para compreendê-los a partir de suas
fundações, a teoria queer
também propõe a Desconstrução das identidades dos indivíduos a
fim de compreendê-las.
O gênero, assim compreendido,
torna-se livre de pré-julgamentos e de normalizações e pode ser
entendido como algo que pode assumir formas diferentes, sem que isso
signifique uma anomalia. Na educação, essa perspectiva pode
significar o aprendizado de uma nova maneira de se enxergar a
sociedade e a pacificação entre entes presentes na escola e,
posteriormente, na própria sociedade.
1 O significado de tabu
geralmente se refere a uma proibição da prática de qualquer
atividade social que seja moral, religiosa ou culturalmente
reprovável. O termo é usado também para se referir a aquilo que
se crê que não deveria ser dito ou mostrado.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. 2ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
CAROLLI, André Luís. Desconstrução de discursos discriminatórios sobre a diversidade de expressão da sexualidade e da identidade de gênero expressos entre alunos e alunas do ensino médio. Dissertação de Mestrado em Educação, 199 p., sob orientação da Profa. Dra. Maria José de Jesus Alves Cordeiro - UEMS. Paranaíba, MS: UEMS, 2017.
DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Editora Perspectiva, 1973.
______. A Farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras, 2005.
______. A Escritura e a Diferença. São Paulo: Editora Perspectiva, 2009.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. 13 edição. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1999.
______. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Petrópolis: Editora Vozes, 2006.
______. A Arqueologia do Saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
JAGOSE, Annamarie. Queer Theory: An Introduction. New York: New York UP. Krouwel, 1996.
LOURO, Guacira Lopes.O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
______. (Org.) Teoria Queer – Uma Política Pós-Identitária para a Educação. Estudos Feministas. V. 9, n. 2, p. 541-553, 2001.
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